sábado, 7 de maio de 2016

E QUANDO NÃO SE TEM MAIS A BLUSA DE LACINHO?


              Eu sempre soube que as palavras poderiam promover guerra ou paz. O que eu não tinha me dado conta ainda, era que minhas palavras pudessem sentimentalmente falando, acorrentar alguém. Afirmo isso assim com essa convicção porque foi dessa maneira que certa vez definiram meus escritos. O meu namoro com o homem do conto da blusa de lacinho acabou por causa da distância. Esse foi o único motivo. O respeito sempre se fez presente na relação, assim como a sinceridade.
            Tanto eu quanto ele, mesmo depois do término, continuamos por dentro de tudo que acontece na vida um do outro, até hoje. Passamos a ser confidentes. Ele arrumou outra namorada, eu também entrei noutro relacionamento, mas mesmo assim, conseguimos nutrir essa relação de amizade. Ele continua morando longe de mim, mas tem uma casa na minha terrinha, então quando resolve aparecer me telefona antes. Sempre foi assim. O inacreditável é que o danado me respeita até mesmo quando eu estou com outra pessoa. Não avança sinais. Esse é mais um ponto que temos em comum: Não nos dividimos. Por esta razão, acredito que fica explicado o grau elevado de intensidade empregado em nossos reencontros.
            Ele sempre soube que escrever é uma das minhas maiores paixões e também sempre demonstrou gostar de ganhar meus escritos. Se eu demorasse para escrevê-lo, me cobrava, em tom autoritário. Me prevalecendo disso, criei o hábito de descrever minuciosamente os nossos encontros e enviava para ele, como uma espécie de "diário a dois". Essa foi uma solução que encontrei para amenizar a distância que sempre estava entre nós. Um dia, eu estava em seus braços, no outro, ele tinha meu texto diante dos olhos como recordação do que passamos no nosso ontem. Segundo ele, os meus textos continuam sendo indispensáveis. Com o fim da nossa relação, o diário deixou de ganhar novos “capítulos”. Até um certo dia...
            O quarteto amigo passou a ser amigo dele também e vez por outra tentava fazer uma reconciliação nossa. Isso passou a ser cada vez mais constante, até que eu fiquei novamente solteira e em um dos meus domingos solitários, sem nada para fazer em casa, resolvi escrever mais uma vez sobre a nossa história (o que seria posteriormente intitulado por: A infalível chantagem da blusa de lacinho). Com o conto pronto, julguei que tinha escrito o último capítulo do nosso diário a dois.
Certa vez, eu estava colocando minha estante em ordem, quando uma amiga chegou aqui em casa. Animada com a quantidade de livros, ela começou a me ajudar na arrumação. Ao encontrar um grosso diário, não conseguiu disfarçar a curiosidade e perguntou:
-Um diário sem cadeado? Nunca vi! Conta fatos da sua vida?
-E como conta! Mas não é só meu. É um diário a dois, por esta razão não tem cadeado.
-Diário a dois? Que interessante! Isso aguça a curiosidade de qualquer um, sabia?
-Sabia. A minha vida, por mais insignificante que seja, desperta a curiosidade dos outros. Mas não é qualquer um que tem acesso à minha estante, o diário está protegido dos olhos alheios...
-Então já que eu estou tendo acesso à sua estante, será que eu posso lê-lo?
-Eu deixo você ler qualquer livro, menos este. Como já disse, é um diário a dois e você está pedindo permissão somente a mim. Você deve receber autorização de ambas as partes para manuseá-lo.
-Então me fala quem é ele, quem é o outro escritor? Poderei pedir a permissão dele...
Dei um sorriso enigmático, afinal, a curiosa criatura em questão, é uma das integrantes do tão falado “quarteto amigo”, e conhecia muito bem quem tinha participação naquele diário comigo. Ao revelar o nome do “santo”, ela ficou toda animada:
-Ele já leu isto?
         -Quase tudo. Na verdade, este diário “a dois”, contraditoriamente, é escrito apenas por mim, é nada mais nada menos que o rascunho dos e-mails que sempre enviei pra ele. A única coisa que ele não leu foi o último capítulo.
            -Por quê?
            -Porque quando escrevi nossa relação já tinha acabado e ele estava namorando outra moça, resolvi deixá-lo quieto!
            -Será que ele ainda está namorando?
            -Não faço ideia, a última vez que nos falamos foi no meu aniversário quando ele me ligou. Naquele tempo, estava num relacionamento sério.
            -Ele sabe que você está solteira?
            -Acho que não.
            -Vou ligar para ele!
          Esta amiga cumpriu sua palavra. Nesse telefonema, ela matou todas as suas curiosidades e revelou tudo pra ele. Disse que tinha descoberto o nosso diário, confessou estar muito curiosa para lê-lo e que eu tinha escrito um “capítulo final” na nossa história. Não segurou a língua e continuou: “Ela está solteira!”. Ele não se conteve e ordenou:
            -Passe o telefone para ela, agora!
            O tom de voz sugeria ser uma bronca. Dispensando o habitual “minha linda”, me disse com muita autoridade:
            -Como é que você escreve mais um capítulo no nosso diário e eu só fico sabendo disso por terceiros?
            -Mas eu escrevi quando terminamos o namoro e você estava namorando outra pessoa, não achei conveniente enviar essas palavras para você.
            -Pois fique sabendo que eu estou solteiro e exijo que você me envie o quanto antes!
            -Tudo bem, eu enviarei. Só não posso fazer isso com tanta urgência porque o conto é grande, tenho que digitá-lo, e não estou com este tempo todo nesse exato momento. Mas prometo que você vai recebê-lo.
            -Outra coisa, que negócio é esse de “capítulo final”? Por que você colocou um fim na nossa história?
            -Coloquei um fim porque você estava em outra relação.
            -Vou resolver a questão desse intruso ponto final, me aguarde!
            A nossa palavra sempre foi cumprida, tanta veracidade de ambas as partes, sempre causou medo. O dito era sempre feito.
            Nessa mesma semana, saí de casa e fui resolver algumas coisas na rua. Me surpreendi ao vê-lo na minha terrinha. Ele estava em seu carro, com os olhos mais espiões que já vi na vida. Pensei: “Dessa vez ele veio sem me avisar, as coisas não estão boas para o meu lado! Será que ele veio disposto a apagar o ponto final do conto?”. Me questionava a cada segundo... Ele passou quase batendo em mim e não me viu. Deixei que passasse, sem ser notada mesmo, afinal, se ele tinha se deslocado da cidade dele para a minha, com o propósito de me ver, ele obviamente daria um jeito de falar comigo e eu não precisava me jogar desesperadamente na frente do carro dele. Isso era uma questão lógica.
            Porém, alguns detalhes impossibilitavam nosso reencontro: eu havia mudado de casa e também o número do telefone. Ele não sabia disso. Então, uma coisa era certa: Ele me procuraria pelas redes sociais. Eu não estava enganada. Quando cheguei em casa e liguei o computador, ele estava online e já tinha deixado a seguinte mensagem:
            -Cadê você? Estou por aqui, tentei te ligar, teu celular não pega, tua casa está fechada. Me ligue com urgência! Meu número continua o mesmo.
            Ativei o bate-papo:
            -Eu sei que você está por aqui!
            -????????? (A resposta dele foi este monte de interrogações mesmo!)
            -Eu te vi hoje.
            -Aonde?
            -Você passou quase batendo em mim e não me viu. Outra coisa, a casa fechada não é mais a minha porque me mudei e o telefone desligado também não é mais meu, anote o novo...
            Imediatamente me ligou:
            -Está provado que você me enfeitiçou! Eu vim para cá com o propósito de te encontrar, te procurei incansavelmente e você acaba de me falar que eu passei quase batendo em você e não te vi...
            -Eu te vi mesmo! Tenho como te provar que estou falando sério. Posso falar sem medo de errar a cor da camisa que você estava usando, o nome da rua e a hora que você quase me atropelou...
            -O que você está fazendo agora? Vou te buscar!
            - Agora eu não posso!
            -Por que não pode?
            Dei meus motivos, mas ele não pareceu muito conformado:
            -Eu preciso ver você e ler este texto sobre mim que você ocultou.
  -Você só poderá me ver na segunda-feira.
            -Mas eu tenho que voltar para casa no domingo!
            -Bem, é uma pena! Não estou te dando desculpas, já mostrei meus motivos reais. Espere até segunda que você não vai se arrepender, te garanto! 
            -Mas eu quero você antes de segunda.
            -Finalmente: Você quer o texto ou quer a mim?
            -Quero os dois!
            -Eu já vi este filme... Antes essa sua possessividade toda, era para ter a mim e a blusa de lacinho, agora quer ter o texto também?
            -Claro! Se o texto fala sobre mim e se foi escrito em nosso diário, me pertence também.
            -Não tiro sua razão, mas a blusa de lacinho foi comprada por mim, você me tomou e ela passou a ser somente sua. Acredito até que depois de tanto tempo ela já deve ter tido o lixo como fim.
            -Nunca duvide de mim!
            -Quer me dizer que mesmo tendo namorando outras mulheres, essa blusa ainda existe?
            -Agora eu sou obrigado a usar suas palavras como argumento: Não aposte porque eu ganho!
            Ainda com um tom de raiva na voz, me perguntou:
            -Segunda que horas?
            -Desistiu de viajar no domingo?
            -Claro! Preciso ver você!
            Mesmo com tanta insistência, não conseguia acreditar que ele estivesse me desejando porque demonstrou por todo o tempo estar com muita raiva. Quando a tão falada segunda-feira chegou, liguei pra ele:
-A pergunta que não cala: Ainda estás na minha terrinha ou me deixaste na mão?
-Estou aqui! Que horas posso te buscar?
-Pode vir agora.
Ele veio, eu entrei no carro e tive até medo da sua expressão. Ele estava muito sério. Ficou calado o tempo todo. Ao chegar a casa dele, fui beijada violentamente. Fiquei sem entender nada, mas retribuí o beijo. Depois, ao som de Engenheiros do Hawaii (Refrão de bolero), ele falou seriamente:
-Escute essa música, não consigo escutá-la sem lembrar de você, especialmente nesse trecho: “Seus lábios são labirintos/ que atraem os meus instintos mais sacanas...”.
Nesse momento, me sorriu com o seu “marcante sorriso cúmplice” sempre tão utilizado nos momentos mais impróprios, com o intuito de me desequilibrar mesmo. E o pior que ele sempre me vence nesse aspecto. Perturbada com a situação, questionei:
-Se queria me dar esse beijo de uma maneira tão intensa, por qual razão me tratou tão secamente?
-Guarde o papo para depois! Tire sua roupa, agora!
-Hãããããã? Agora eu acredito que você enlouqueceu de verdade! O que queres com tanta raiva? Cadê o teu habitual romantismo?
-Quero que tire essa roupa comportada, vá até meu quarto, e vista o que está em cima da minha cama!
Eu comecei a ficar com raiva de tanta autoridade, mas fui bem curiosa no quarto saber o que me esperava por lá. A minha raiva passou no mesmo instante. Na cama estavam todas as cartas e e-mails impressos que eu escrevi para ele, alguns papéis já bem amarelados pela ação do tempo. Para minha surpresa, no meio das minhas palavras, estava a minha blusa de lacinho e peças íntimas que eu usava e ele sempre sequestrava. Fiquei mais confusa ainda:
-Vamos, me explique! Por que estás com tanta raiva de mim e ao mesmo queres que eu vista isso?
-Quero que vista porque preciso matar essa saudade absurda que sinto e o motivo da minha raiva é porque você duvidou de mim e durante todos esses anos, nunca te dei razões para desconfianças. Sou incapaz de jogar tua blusa fora, ela é sua! Apenas tomo conta dela. Outra coisa: suas palavras são importantes pra mim, não tenho coragem de me desfazer das suas cartas e e-mails. Achei uma injustiça sem tamanho, o fato de dar tanto valor às suas palavras, e por fim, você escrever em nosso diário e não me dar o prazer dessa leitura. Sempre te cobrei cartas e você sabe disso. Estão todas aí, pode conferir. Se você quisesse, poderíamos até fazer um livro de todo esse material que construímos com a nossa relação.
-De maneira alguma! Enlouqueceu?! Só quem pode ler isto somos nós dois. Eu não posso pegar esse tipo de linguagem que uso somente contigo e publicar em um livro. É muito íntimo.
-Como não pode publicar? São belas cartas!
Continuou com um tom malicioso na voz:
-E excitantes também...
-Ahhhhh... Não tem nem graça! Meu lindo, quem faz propaganda quer vender. Se eu divulgo por aí o que tu és capaz de fazer, perco meu sossego!
-Não sei que insegurança é essa agora. No nosso diário, você não fala somente sobre mim, fala muito sobre você também e de uma maneira muito original. Os riscos seriam proporcionais.
-Tá vendo? Sem querer você acabou concordando comigo, não dá certo!
-Vamos, me dê o último texto que você escreveu, estou ansioso...
Mostrei. Ele leu sem pausas. Depois me disse:
-Belíssimo e apaixonante! Mas devo discordar de você em um ponto: não concordo que este seja o capítulo final. Seria uma injustiça comigo. Até porque eu vim com gosto de gás, cheio de propostas para você e te quero na minha vida a todo o custo. Trouxe sua blusa e alguns apetrechos, para agora mesmo, escrevermos mais um capítulo nesse diário. Vim tirar o ponto final e colocar reticências. Sou um grande incentivador seu. Acredito que algum dia eu consiga te convencer a escrever um livro e quero que me prometa que vai colocar este conto da blusa de lacinho nele.
-Não sei se algum dia escreverei um livro. Acho isso uma possibilidade muito remota. Caso você realmente tenha a competência de me convencer, poderei perfeitamente publicar o nosso conto, mas não dessa maneira que você acabou de ler.
-Como assim?
-Já expliquei a razão. Este conto foi escrito com uma linguagem nossa, íntima. Não cabe aos olhos de mais ninguém. Te prometo publicá-lo, mas ele sofrerá alterações e teu nome não será divulgado para que eu possa dormir tranquila.
-Você está sendo injusta comigo, minha linda...
-Por quê?
-Conheço teus contos, tuas cartas, teus e-mails, tuas crônicas, enfim... Conheço tuas palavras! Convivo com elas há tempos. Sei que ao escrever sobre alguém, você divulga o nome e ainda coloca a foto do cidadão. Por que comigo tem que ser diferente? Quero no nosso conto a nossa foto e os nossos nomes.
-Vamos fazer um trato, então? Na nossa foto, eu aparecerei vestida com a blusa de lacinho, ok?
-Mas de jeito nenhum! Já disse: Vocês duas são privilégios meus. Deixo não!
-Ok! Tenho então outra proposta: eu te publico com nome, foto e tudo o mais e em troca você me devolve a minha blusa.
-Me deixe no anonimato! Prefiro!
É, essa confusão foi muito longa, prometi para ele que publicaria o conto da blusa de lacinho, com as devidas alterações, mas até hoje discutimos muito a questão da publicação desse diário a dois. Ele queria que o diário fosse publicado na versão original, mas essa coragem eu não tenho. Justifico sempre com muita honestidade que não são palavras públicas, são únicas! Palavras minhas para ele e isso deve bastar. O conto da blusa de lacinho, não foi o fim do nosso diário, ainda escrevemos muitos capítulos tendo a blusa como marca registrada de uma relação.
A distância mais uma vez imperou e nos perdemos, ou nos demos um tempo, não tenho certeza quanto a isso, mas uma coisa é certa: Desde o dia que ele roubou minha blusa, fiquei impossibilitada de fazer a infalível chantagem, mas descobri no meu texto outro ponto fraco dele. Quando a saudade bate, eu ligo e digo:
-Acabei de escrever o capítulo final para o nosso diário a dois!
-Não! Tire este intruso ponto final! Nossa história deve ser escrita com reticências.
Pensando nessa possibilidade, ele pega o carro, chega rapidinho em minha terrinha e diz:
-Minha linda, não me teste! Sou seu! Entenda que você não precisa fazer nenhum esforço para me ganhar. Você me acorrenta até mesmo com suas palavras, não use “a infalível chantagem do último capítulo” no nosso diário inconcluso, eu absurdamente te amo!
 Ele chegou ao ponto de me prometer:
-Sei que escreverás um livro algum dia. Sei também que mesmo com as devidas alterações, você publicará o conto da blusa de lacinho nele, porque você me prometeu isso. Saiba que a distância não me impede de te procurar. Te sigo em todas as redes sociais, sei dos seus passos, saberei também a data do lançamento do seu livro, não duvide disso. Te previno desde já: Cuidado! Eu estarei lá. Teus amigos correrão o risco de ficarem sem seu autógrafo. Não sei se vou conseguir te observar de longe, talvez eu te pegue pelo braço e suma com você. Enquanto eles querem um autógrafo, eu quero a escritora.
-Não precisa fazer uma chantagem dessas. A escritora é toda tua e te promete que depois dos autógrafos vestirá para você a blusa de lacinho, e irá satisfazer suas doces vontades. Digo mais, a mesma caneta utilizada para os autógrafos será usada para escrever em teu corpo algumas palavras que só devem ser lidas por você e por fim, eu te autografarei! Esta é a prova que a escritora é tua, outra pessoa não teve e não terá um autógrafo meu pelo corpo...
-Poxa, fiquei curioso! Em que parte do meu corpo você deixará seu autógrafo?
-Pode escolher.
Essa questão desse autógrafo íntimo acabou sendo motivação para mais um capítulo do nosso diário e depois desse namorado descobri que não preciso abusar da sensualidade das roupas femininas para magnetizar o desejo dos homens, posso fazer o bom uso da simplicidade e do recato em meu vestuário. Para amarrar significativamente um homem basta utilizar (e cumprir) as palavras. Os textos do diário a dois mostrou-se mais eficiente que todas as minhas armas de sedução, incluindo a infalível chantagem da blusa de lacinho...


(Para meu nobre amigo e poeta: Zé Ripe)

2 comentários:

  1. "Utilzar(e cumprir) as palavras."
    "Senta que já vem história!"
    Vou aguardar o cumprimento das pavras. Tô parecendo fanático s por novelas. E como será? Eita cabra de sorte, esse teu "namorado." Abraços, grande escritora e amiga Silvia!

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  2. Obrigada por sempre dar uma atenção especial aos meus escritos, nobre poeta e amigo, Zé Ripe. Continue acompanhando os capítulos vindouros do meu Livreto Mágico. Um abraço meu.

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